isso aqui começou porque ela é branca. eu não. nem ele.
já teve a sensação de não conseguir alcançar uma versão de existência que te caberia, é sua, é a sua vida bem ali na sua frente, mas sendo você quem é, nunca poderia ser essa versão de você? porque ao mesmo tempo que é você ali, não tem nada seu nessa possibilidade? eu sinto isso quando eu lembro que eu sou negra. sinto isso quando preciso lembrar que eu sou negra, porque na maior parte do tempo eu esqueço disso. eu lembro disso quando subo uma rua qualquer em laranjeiras e as moradoras brancas estão aguardando a polícia revistar o negro na bicicleta. eu lembro disso quando eu sou obrigada a lidar com aquele tipo de pessoa branca que todas as pessoas negras esquecem que é branca mas que só a adoram e idolatram porque ela é branca. eu lembro que não sou branca quando olho pro espelho. e eu vejo todas as vidas que nunca serão minhas porque não tem nada meu ali. tudo que é meu é a minha cor. estou presa a ela. presa a tudo que vem com ela. presa a tudo que vem com os que não tem a mesma cor que a minha. estou presa. nenhuma existência minha nunca vai funcionar como quer, como deseja, como anseia. nada nunca vai ser um desejo realizado. tudo é sempre essa espera agonizante. eu aguento. tá. mas eu não me identifico com porra nenhuma. nem com as três nem com nenhuma. eu não me identifico. eu não me sinto sendo alguém. um alguém que é uma série de coisas reunidas que resulta em si, sabe? exílio. exílio do sol. tapinhas no ombro por constrangimento de ser quem não é. eu tenho menos raiva de quem eu sou do que de todas as coisas que eu não sou. não que eu seja. mas são 23 anos, alguma coisa estou sendo, pra continuar aqui só assim. eu aguento? só(?) tô cansada dos alguéns que quero ser, dos alguéns que quero ter, dos que eu não sei, dos que eu não tenho coragem de descobrir. cansada da fraqueza. aguentar não é ficar forte. aguentar é uma anemia. nem meu prazer termina em prazer. de todos os últimos, todos findaram na agonia. eu não tenho dinheiro pra terapia. quer dizer, eu tenho, eu teria. precisa ser alguém pra se curar? ou se curar é tornar-se alguém? eu não sei. eu não sei de nada. eu tô cansada. cansada de precisar saber sobre tanta gente, você, ele, os outros, elas, ela, todos os pronomes, todas as palavras. cansada de querer não bastar pra nada. nada acontece porque se quer que aconteça. tudo acontece porque acontece. "pra fazer alguma coisa é só ir lá e... fazer!" não é mentira, mas absolutamente não pode ser verdade. a Ethel brigaria comigo agora. como não é e não pode ser ao mesmo tempo, Luz? logo você! que me ama. me adora. e aprendeu tanto comigo! logo eu. eu. que porra é um eu? o que é filosofia? se você me olhasse agora, tivesse nesse momento olhando pra mim, você não acreditaria que cada palavra dessa tá saindo(?) de mim. não parecem minhas. não dessa que estou sendo agora. na verdade, se você estivesse me vendo agora, eu não estaria dizendo nada. eu estaria morrendo, respirando sem prestar atenção, fazendo e acontecendo dentro de mim e de você. na minha cabeça rimou, porque ela estava pensando em outra coisa que eu não escrevi ainda. eu nem vou escrever, mas queria que soubesse. eu rimo por dentro mesmo quando não rimo por fora. sempre odiei rimas. acho tão previsíveis. não há surpresas nem diferenças. são todas iguais, todas dizem a mesma coisa e nem é uma coisa boa. eu acho que gosto das suas porque são suas, só. eu quero parar. esqueci o que eu queria parar, minha mãe entrou no quarto pra falar sobre vacina. puts. mais uma dorzinha no braço. mais uma dor. mais uma. mais uma menos uma? merda. eu poderia ficar falando pra você pra sempre. muito bom se sentir ouvida, ainda que não respondida muitas vezes. acho. sei lá, um dia isso muda. não você, eu. você também: tudo muda. e de algum jeito, você tá em tudo. eu poderia... mas não vou.
e ah, não.
eu não aguento, não.